Enquanto meu corpo seguia para sepultura, realizaram meu velório numa imensa sala com moveis coloniais acaju. Fixada na parede uma lista de todos os filmes que assisti e por algum motivo recomendei, ora por comoção, ora por fundamentos morais e uns poucos por pura diversão. Títulos de livros, fotografia de lugares e de pessoas formaram um mural com o título “Um pedacinho dela”.
Uma pequena multidão se reuniu em volta do que deveria ser meu caixão. Porém, a visão fúnebre gritou risos com a imagem de um filhote de cachorro com um imenso laço azul em volta do pescoço. O cão latiu, empinou o traseiro e correu em disparada rumando às crianças. Ouviu-se:
_ Isso é a cara dela!
Dia quente! Serviram sorvete com coberturas coloridas: granulado, confetes, morango com chocolate, caramelo com doce de leite.
Crianças com a boca melada, risinhos contidos, gargalhadas soltas.
“Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras!”
Sobre o balcão, próximo a entrada, ligaram o aparelho de som. Batuques iniciaram a trilha sonora do “Tarzan” o som era Phil Collins e a voz Eddie Mota:
“Pois no meu coração, você vai sempre estar...”.
Eu estava lá!
O cachorrinho girou em torno do próprio rabo e correu, cruzando a porta de entrada. Todos os seguiram. Embaixo de uma árvore de salgueiro chorão o cão sentou-se.
Crianças ofegantes, joelhos ralados, meias desfiadas.
Não havia lápide. Em seu lugar uma escultura em biscuit: uma menina com vestido laranja, cabelo repartido e preso com fita floral, brincando com uma bola; um menino de bermuda xadrez azul e verde, sem camiseta, cabelo crespo empinando uma pipa. Descalços, sorrindo.
Entalhado no tronco da árvore a frase: Um brinde a vida!
Acenderam uma fogueira, alguém puxou do bolso uma folha de papel e começou a ler Precauções Inúteis de Ledo Ivo. Um músico com seu ukulele dedilhou a versão havaiana de Somewhere Over The Rainbow. Alguém arriscou cantar:
“Uuuuu uuuuuu uuuuuu”
Foi minha melhor morte.